A AMEÇA DOS PETS
1894. Nesse ano, Mr. David Lyall foi encarregado para o posto de faroleiro da ilha Stephen, no Estreito de Cook, no canal que separa as ilhas do Norte e do Sul da Nova Zelândia. Ele levou consigo para a ilha seu animal de estimação - um gato chamado Tibbles. O animal começo a trazer para o local onde o dono se instalou pequenos pássaros que predava. Sendo um naturalista amador, Mr. Lyall passou a preservar os espécimes - que achou bem diferentes dos que já vira antes - e os entregou para venda para pesquisadores europeus. Logo percebeu-se que eram pertencentes a uma nova espécie de ave - e possivelmente a única espécie de Passeriforme não voadora que conhecemos. Algum tempo depois o gato parou de fazer as "entregas" : não havia mais pássaros na ilha. Esta é a história natural da cambaxirra-da-ilha-de-Stephen ( Xenicus lyalli ), que foi batizada em nome do homem que a tornou conhecida no meio acadêmico. Não fosse sua ação talvez nem soubéssemos da existência da ave e teria sido uma extinção silenciosa. Esta história sui generis serve para ilustrar um problema crônico e crescente na atualidade : a ação da predação de animais domésticos / ferais sobre a fauna silvestre - sobretudo as aves. Espécies insulares são as mais susceptíveis à extinção associada à predação - exemplos atuais de aves ameaçadas por essa modalidade incluem o papagaio kakapo neozelandês ( Strigops habroptilus ) que até alguns anos pensava-se , erroneamente, que não era predado por gatos pelo porte ( chega a 1 Kg de peso) e o kagu ( Rhynochetos jubatus ) da Nova Caledônia que é ainda caçado por cães domésticos mesmo em áreas de proteção ambiental . Mas nem só aves que são endêmicas de ilhas sofrem com a ação dos nossos companheiros do dia-a-dia.
No final do século XX e início do século XXI , com a população humana crescente e necessitando cada vez mais de áreas para produção de alimentos e moradia os habitats naturais encontram-se cada vez mais na situação de "ilhas". Ou seja : espécies ecologicamente exigentes tendem a desaparecer e outras, mais ecléticas, tendem a ocupar os "novos" ambientes. Junto com a expansão humana há seus aliados mais comuns : os animais de estimação . Estes também são predadores cujo instinto permanece mesmo após milênios de domesticação. Imaginem s situação : aves sendo forçadas a encarar um mundo novo dominado pelo ser humano e tendo que enfrentar predadores que encontram-se em número tão grande como nunca uma espécie predadora nativa já alcançou. Milhões e milhões de cães e gatos . Para as aves os pertencentes ao segundo grupo são os mais ameaçadores . Segundo o "Biodiversity Group, Environment Australia" os gatos (da espécie Felis sylvestris catus )são classificados em três categorias:
a) gatos domésticos : dependentes por completo do ser humano para abrigo e alimentação sendo considerados "propriedade" dos "donos".
b) gatos errantes : os que coabitam com o ser humano mas não são de propriedade do mesmo. Podem subsistir com auxílio parcial do ser humano.
c) gatos ferais : são os que independem do ser humano para suprir suas exigências de abrigo e alimentação (ou seja, dependem das próprias habilidades de caça para sobreviverem).
Estudos realizados nos Estados Unidos sugerem que anualmente gatos domésticos /ferais matam entre 1,3 a 4 bilhões de aves (sem contar pequenos mamíferos e anfíbios/répteis). No Brasil não temos estatísticas - mas pelo comparativamente menor cuidado das pessoas com relação a seus "pets" em relação aos Estados Unidos e à - infelizmente ainda muito comum e cruel - prática de se "soltar no mato" criações indesejadas o impacto não deve ser pequeno. Estudos recentes mostram a presença de gatos domésticos / ferais em todas as áreas de preservação natural de ilhas com vegetação de Mata Atlântica do litoral de São Paulo - e a pesquisa das fezes dos gatos domésticos resultou na presença de vestígios de presas silvestres em boa parte das amostras. Nessas áreas, moradores locais permitem que seus felinos saiam das residências - e referem que ficam horas ou mesmo dias perambulando pelas áreas de mata. Estudos de rádio telemetria estão sendo conduzidos na Ilha Comprida (litoral de São Paulo) para se avaliar o deslocamento dos animais na mata - e dados preliminares já indicam que os gatos percorrem mais de 1 quilômetro mata adentro a partir das casas de seus donos . Nas cidades e áreas rurais espécies que forrageiam no solo , como pequenos Columbiformes ,são as mais visadas pelos gatos . Pássaros que nidificam no solo ou próximo a ele , como o tico-tico ( Zonotrichia capensis ) também são facilmente eliminados. O gato que sai no quintal pela manhã, bem alimentado, vai predar , instintivamente, qualquer vítima potencial. Cães também predam aves - sobretudo ninhegos ou espécies de voo lento como alguns Tinamiformes - mas seu impacto maior é sobre Mamíferos de pequeno a médio porte. As pessoas muitas vezes não enxergam seus pets como predadores . Só " às vezes" o gatinho pega um passarinho... Comedouros de aves devem ser colocados de maneira mais favorável possível a uma necessária fuga das mesmas - quanto mais longe do solo, melhor (incluindo-se medidas que evitem que sementes caiam do comedouro no chão) , e sem locais próximos que favoreçam uma emboscada.
O problema é muito grande - e não é muito menor , como muitos creem, que os que enxergamos com mais nitidez , como a perda do habitat ( inclusive as queimadas e as construções de hidrelétricas) , os atropelamentos de fauna, a caça direta , o envenenamento (proposital ou indireto). A solução também é muito complexa e longe de ser conseguida , pois envolve também questões éticas sobretudo no caso dos ferais. Todas as tentativas de mitigação da predação - como o uso de "sininhos" no pescoço dos felinos - mostram-se pouco eficazes. O ideal seria que os proprietários mantivessem seus pets dentro do ambiente domiciliar e que a castração fosse mais difundida. Lembremos que não podemos julgar os animais utilizando critérios da Razão humana - animais têm instinto e jamais são "bons" ou "maus". Desse modo, é importantíssimo que o tema seja levado ao grande público para conscientização das pessoas acerca do assunto.
Bibliografia :
-del Hoyo ,J. ,Elliott A. & Christie , D.A. eds ( 2002 ) Handbook of the Birds of the World .Vol 7. Jacamars to Woodpeckers. Lynx Editions, Barcelona.
-Ferreira, G.A. et al. "Gatos : vilões ou vítimas ?" . Projetos Temáticos do IPeC . Projeto Carnívoros (texto on-line 2015)
-Fuller, E. 2000 "Extinct Birds" Oxford University Press
-Loss, S.R. et al. "The impact of free ranging domestic cats on wildlife of the United States" . Nature Communications , Jan 2013 (on-line article)